sábado, 12 de dezembro de 2009

Bow echos e derechos!

Inúmeros acontecimentos atmosféricos recentes -- digo, de alguns anos para cá -- têm mudado a percepção do brasileiro a respeito da ocorrência de tempestades severas no nosso país. [Primeiro preciso deixar claro o que entendo por tempestades severas: uma definição rigorosa e universalmente aceita não existe, mas aqui me referirei àquelas tempestades capazes de gerar grandes pedras de granizo e/ou rajadas de vento destrutivas e/ou tornados]. Muita coisa tem sido publicada na mídia ultimamente sobre, por exemplo, a ocorrência de granizos e tornados no nosso país; e é fato que a população brasileira tem, hoje, uma percepção um pouco melhor de que o Brasil não é um país livre de desastres naturais.

Enfim, muito temos a discutir sobre este vastíssimo assunto, mas para inaugurar este blog optei por falar de um tipo de tempestade severa praticamente desconhecida dos brasileiros: as tempestades tipo bow echo e os ventos derechos. Estas tempestades têm poder destrutivo comparável ao das tempestades tornádicas, e a ocorrência do derecho -- que são rajadas de vento produzidas por bow echos -- possui o mesmo status de um outbreak de tornados no que diz respeito à "hierarquia de destruição". Neste contexto, é interessante ressaltar que a palavra derecho (de origem da Língua Espanhola) significa "direto", no sentido de "em linha reta". Esta nomenclatura, originalmente cunhada por G. Hinrichs em 1888 e resgatada pelo trabalho clássico de Johns e Hirt (1987), foi criada de modo a contrastar com a noção de torção (ou rotação, giro) associada à palavra "tornado". Assim, colocando de forma bem simples, enquanto o tornado representa um fenômeno altamente destrutivo associado a ventos que sopram de maneira giratória, o derecho, em contrapartida, representa um fenômeno altamente destrutivo associado a ventos que sopram em linha reta (mas note que o termo derecho refere-se exclusivamente a ventos em linha reta causados por tempestades convectivas locais, o que exclui os ventos destrutivos causados por outros fenômenos meteorológicos como ciclones extratropicais e furacões).

A imagem abaixo, extraída de um vídeo de baixa qualidade (nota: fui eu que filmei, por isto a baixa qualidade...), mostra uma tempestade tipo supercélula em transição para o modo bow echo, observada no dia 27 de maio de 2001 no estado do Oklahoma/EUA, e que produziu (infelizmente) um exemplo clássico de derecho na noite daquele dia e na madrugada seguinte.

http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178208899/in/set-72157622860891505/

Abaixo segue uma imagem do radar meteorológico de Twin Lakes (Oklahoma City) no momento da passagem do bow echo pela região sul do estado:

http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178208375/in/set-72157622860891505/

Repare no formato de "arco" da linha de instabilidade, que é uma das características mais marcantes do bow echo (bow = arco). As rajadas de vento nas situações de derecho podem facilmente ultrapassar os 150km/h; e o que é pior: ao contrário dos tornados, os derechos podem durar várias horas e cobrir centenas de quilômetros durante seu tempo de vida. Isto é acentuado pelo fato do bow echo ser o "Fórmula 1" das tempestades convectivas, podendo ter velocidade de translação superior aos 100km/h!

Dados estes pontos, existem apenas duas situações atmosféricas em que o Storm Prediction Center (centro norte-americano de previsão de tempestades severas) emite avisos de tempo severo com status de "condição particularmente perigosa" (ou "PDS", por particularly dangerous situation): uma no caso em que um outbreak de tornados é esperado -- PDS tornado watch -- e outra no caso de previsão de um episódio de derecho -- PDS severe thunderstorm watch. Veja os exemplos abaixo.

PDS tornado watch:
http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178207835/in/set-72157622860891505/

PDS severe thunderstorm watch:
http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178967652/in/set-72157622860891505/

A grande maioria dos eventos de bow echos e derechos é registrada nos EUA e sul do Canadá, mas não há motivos para crer que estas tempestades não ocorram em outras regiões do mundo (a Europa, por exemplo, possui alguns registros de derechos). E no Brasil? Se supercélulas e tornados são registrados em nosso país, o que podemos dizer a respeito de bow echos e derechos? Bom, o fato é que muito pouco ainda sabemos a respeito destes episódios no Brasil; eles parecem ser mais raros do que as supercélulas e os tornados em nosso país -- certa vez, em conversa com o pesquisador Bob Johns (primeiro autor de Johns e Hirt (1987)), algumas hipóteses interessantes para explicar esta observação foram levantadas, mas isto fica para outro dia. Contudo, cito abaixo dois eventos recentes que representam exemplos inequívocos de bow echos sobre o Rio Grande do Sul (mas teriam sido derechos? Veja abaixo a minha opinião.).

No dia 7 de setembro de 2009 os três estados do Sul Brasileiro experimentaram uma onda de tempo severo de raras proporções em nosso país. [Durante meus 4 anos e meio morando em Oklahoma/EUA experimentei pessoalmente inúmeras situações de tempo severo, algumas particularmente intensas, e posso afirmar com segurança que o evento de 7 de setembro de 2009 no Sul do Brasil foi comparável em magnitude e extensão geográfica às ondas de tempo severo observadas nas Planícies Centrais dos EUA]. Para quem ainda não identificou o episódio, estou me referindo ao dia em que a cidade de Guaraciaba/SC sofreu danos subtsanciais causados, ao que tudo indica, por um tornado.

Naquele mesmo dia diversas localidades nos estados do PR, SC e RS relataram danos consideráveis causados por ventos e granizos; muitas destas localidades nem sequer foram citadas na mídia (em parte porque o (provável) tornado em Guaraciaba/SC ganhou todo o destaque), e por isto poucos têm a percepção real da amplitude geográfica daquele evento meteorológico. Aqui chamo atenção para o episódio específico ocorrido na região da Campanha Gaúcha naquele 07/09/2009. Uma linha de instabilidade (LI) com orientação norte-sul organizou-se sobre a Campanha Gaúcha no início da tarde daquele dia, e ao se deslocar de oeste para leste ganhou intensidade. Neste estágio o segmento mais central da LI adquiriu uma maior aceleração, dando à LI um formato de arco (veja a figura abaixo; imagem do radar de Canguçu, válida para as 13h30, hora local); um padrão típico de bow echo.

http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178209163/

Nesta ocasião, o aeródromo de Bagé (atingido pela LI, mas não pelo seu setor mais intenso!) registrou uma rajada de 70 nós, ou cerca de 130km/h, por volta das 13h (horário local). Por sua vez, o Município de Pedras Altas, logo a leste-sudeste de Bagé, foi atingido em cheio pelo bow echo e muitos danos significativos foram infligidos às edificações e vegetação locais. Realizamos (eu, o Prof. Dr. Vagner Anabor da UFSM, e os pesquisadores Dr. Anderson Nedel e Syilvia Saito, do CRS-INPE) uma análise de danos in loco para este evento, cerca de 72h após sua ocorrência. Um exemplo de dano registrado em Pedras Altas/RS segue na foto abaixo.

http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178969254/in/set-72157622860891505/

Pela destruição (e com uso da escala EF de estimativa de velocidade de vento baseada na destruição causada), estimamos que a velocidade do vento superou os 180km/h; e descartamos a ocorrência de tornado. Ficou claro que tratou-se de uma sequência de micro-explosões (microbursts). A ocorrência de ventos destrutivos sobre uma ampla área (que se estendeu até praticamente a fronteira com o Uruguai) e a estrutura de LI em forma de arco evidenciada nas imagens de radar são consistentes com a ocorrência de um bow echo. Entretanto, não arrisco afirmar que este tenha sido um episódio clássico de derecho porque a extensão espacial dos danos não satisfez rigorosamente os critérios de Johns e Hirt (1987). De qualquer forma, ficou evidente o caso de bow echo, o que tem grande valor do ponto de vista de documentação meteorológica na América do Sul. Estudos serão apresentados em breve avaliando este evento por abordagens distintas (observacional e numérica).

Um segundo caso de bow echo ocorreu entre a noite do dia 29/11/2009 e a madrugada de 30/11/2009 entre a fronteira Uruguai-RS e o centro-oeste gaúcho. Nesta ocasião o sistema de tempestades deslocou-se de sul para norte. Abaixo segue uma imagem de radar (radar de Santiago, válida para as 23h15 hora local) no momento do arco.

http://www.flickr.com/photos/10382801@N04/4178970374/in/set-72157622860891505/

Várias cidades gaúchas relataram ventos intensos e destrutivos naquela noite (ainda que bem menos intensos do que as rajadas observadas em Pedras Altas em 07/09/2009). Contudo. também não é possível caracterizar este evento como um caso clássico de derecho dada a descontinuidade no "rastro de destruição" das rajadas de vento.

De qualquer forma, ambos os eventos citados acima apontam para situações evidentes de bow echos com condições, digamos, "marginais" de derecho no Rio Grande do Sul, em uma primavera marcada por um grande número de registros de tempo severo.

Durante meus estudos nos EUA os bow echos foram meu tema principal de pesquisa (não à toa, meus colegas meteorologistas do SIMEPAR me apelidaram de "boeco") e por isto fiquei particularmente intrigado com os episódios mencionados acima. As condições atmosféricas que favorecem a formação dos bow echos são bem conhecidas e bem documentadas para a América do Norte. São fenômenos previsíveis! Precisamos avaliar se estas condições se repetem na América do Sul ou se condições diferentes (sui generis à América do Sul) levam à formação de bow echos por "um caminho diferente". Meu palpite, baseado na universalidade das leis fisicas que regem o comportamento da atmosfera, é que as condições atmosféricas observadas na América do Norte ocasionalmente se repetem na América do Sul com, talvez, algumas pequenas diferenças. Isto nossa pesquisa procurará responder.